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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Resenha de "Verso universo em Drummond", de José Guilherme Merquior

Leitor, releve a obviedade: os grandes poetas são assim considerados por serem de fato grandes. Ao se lhes pedir contemporaneidade, exibem, imediatos, uma obra apinhada de marcas do tempo, mas com semelhante agilidade voltam-se contra ele. Quando se lhes exige o traço formal inovador — para garantir que a convenção foi enfim ensolarada —, eles, também exigentes, desordenam o alfabeto literário, não se isentando, porém, de reordená-lo, a revelar o nubloso como signo de modernidade. Os grandes são do alto, sem negligenciar qualquer miudeza. 
Assim é com os grandes críticos: não admitem a interpretação literária limitada à catalogação de figuras de linguagem, metros e rimas, mas defendem que sem a identificação do microscópico alicerce formal, a leitura ideológica torna-se defasada, pois nenhuma obra substantiva é efeito sem estrutura. Daí, ao não fazerem apologia da forma ou do conteúdo, ensinam que o conhecimento da literatura vai além dessas esferas, sem, é claro, deixar de passar por elas. Carlos Drummond de Andrade, grande poeta, e José Guilherme Merquior, grande crítico, encontram-se em “Verso universo em Drummond”, tese de doutoramento defendida pelo segundo na Sorbonne, em 1972, e relançada pela É Realizações (o texto original, redigido em francês, foi traduzido por Marly de Oliveira). O título (416 páginas, R$ 59) é um dos volumes que compõem a reedição da obra de Merquior, coordenada por João Cezar de Castro Rocha, professor da Uerj — um dos principais polos brasileiros de reflexão sobre crítica literária. 
A envergadura da tese de Merquior é evidenciada já a partir do recorte: nela são contemplados os doze livros de poesia publicados por Drummond até aquele momento, indo de “Alguma poesia” até “A falta que ama”: “(...) até o momento presente, os mais importantes estudos sobre o lirismo drummondiano só trataram de aspectos parciais (temáticos ou formais) de sua obra, enquanto que a maior parte das visões de conjunto permanece excessivamente sintética. Eis porque nos propusemos esboçar uma interpretação global (...)”.
No estudo, a poética de Drummond é pensada a partir de três planos: a análise do estilo, a depreensão de sua ideologia e significado sociológico e a comparação de sua fatura com o cânone ocidental moderno. Ao executar o projeto, Merquior prioriza conceber a obra estudada como representativa do estilo mesclado, conceito tomado ao teórico alemão Erich Auerbach: “O ‘estilo mesclado’ não é senão a resultante da fusão da perspectiva problemática da vida com as referências ‘vulgares’, isto é, a figuração literária das realidades ‘baixas’, cuja presença foi muito tempo proibida no ‘estilo elevado’ pela poética clássica”. No entender do intérprete, isso corresponde a um veio presente, em variados níveis de teor, em toda a obra do poeta de Itabira.
Apesar de não incorrer no erro de reduzir o objeto de estudo ao seu prisma interpretativo, Merquior por vezes deixa de lograr maior êxito ao não matizar e aprofundar sua linha de raciocínio. “Sentimento do mundo” (1940), por exemplo, é visto por ele como “escorregadela neorromântica”, sendo associável, em âmbito particular, a uma “regressão”, e, em âmbito geral, a um “reacionarismo estético”. Ora, Drummond foi um artista cuja obra pensou e experienciou o mundo plenamente (o que é asseverado pelo próprio estudioso). Ao efetuar sugestões românticas no livro em questão (e não só nele, diga-se), o poeta não estaria potencializando, em caráter macro, a ideia de estilo mesclado, convergindo linhagens — em princípio — inconciliáveis? Ou ainda: diante de excessos da marcha moderna, o autor de “Mãos dadas” talvez tenha colhido o que há de resistência no Romantismo — filtrando-o dialeticamente.
Ao longo dos quatro capítulos da tese, Merquior, demonstrando largo acervo de referências filosóficas e minucioso conhecimento de aspectos formais do texto em verso, nos dá a dimensão do que Drummond representa: “Cantor da terra e da cidade, analista sutil da criação poética, moralista fascinado pelas paixões do homem e pela ordem do mundo, ele é, depois de Machado de Assis (...), o principal exemplo, na literatura brasileira, da obra literária votada à problematização da vida” (grifos do autor). Eis a lição do grande crítico: o que nos outros é mera linha de poema, no grande poeta é torto verso — universo nada óbvio de formas, ideias e verbo.